A FÁBULA DOS LOBOS
Prefácio
No coração de uma densa floresta, onde o vento sussurrava segredos ancestrais e as árvores tocavam o céu, vivia um jovem chamado Kael. Ele era um aprendiz do velho Xâman, um ancião conhecido como o Guardião das Almas. Xâman acreditava que cada ser humano carregava dentro de si dois lobos em constante luta: o Lobo da Luz e o Lobo da Sombra. Kael cresceu ouvindo essas histórias, mas nunca acreditara completamente. Para ele, eram apenas contos para assustar crianças e ensinar boas maneiras. Contudo, numa noite fria, tudo mudou.
Índice
O Chamado da Floresta
A Jornada Interior
O Encontro Final
A Aceitação
Epílogo
O Guardião das Almas
1. O Chamado da Floresta
Kael foi acordado pelo som de uivos. Não eram uivos comuns – havia algo primal e sobrenatural neles, algo que fazia o sangue gelar. Intrigado, ele seguiu o som até uma clareira iluminada por uma lua cheia colossal. No centro da clareira, estavam dois lobos gigantes: um de pelagem branca como neve, com olhos brilhantes que irradiavam calma, e outro negro como o abismo, com olhos vermelhos como brasas.
"Tu vistes, Kael," disse-lhe o Lobo Branco, sua voz profunda ecoando na mente do jovem.
"Finalmente, o momento chegou," rosnou o Lobo Negro. "Tu deves escolher."
"Escolher o quê?" Kael perguntou, confuso e com medo.
"A quem servir," respondeu o Lobo Branco. "A batalha entre a luz e a sombra acontece em cada coração humano. Mas em você, Kael, essa luta tem um significado especial."
"Tu não és apenas um Ser comum," explicou o Lobo Negro. "Tu és o Guardião. Tuas decisões não afetará apenas sua alma, mas de todos os seres e no equilíbrio de toda a floresta."
Kael sentiu o peso daquelas palavras. A clareira parecia pulsar com energia, como se a própria floresta esperasse sua resposta. Ele tentou compreender o que aquilo significava, mas antes que pudesse reagir, sentiu um vento forte soprar entre as árvores. A floresta era viva, com os galhos balançando em uníssono, quase como se sussurrassem.
"Por que eu?" perguntou Kael, sua voz tremula. "O que torna minha escolha tão importante?"
"Porque Tu carregas em ti a essência da floresta," respondeu o Lobo Branco. "Teu coração está conectado ao ciclo de vida e morte, de luz e sombra. É uma responsabilidade que poucos compreendem e possuem."
O Lobo Negro riu, um som que reverberou pela clareira. "E porque Tu já fostes tocado pela escuridão. Você conhece o medo, a dor, o desejo. Mas a pergunta é: Tu os aceita?"
Kael ficou em silêncio. Ele sabia que havia algo em seu passado que evitava confrontar, algo que pesava em sua alma. A clareira parecia escurecer por um momento, como se o próprio tempo esperasse sua resposta.
Antes que pudesse dizer qualquer coisa, os lobos se moveram em direção a ele, seus passos ecoando como trovões. "Tua jornada começa agora," disseram em uníssono, e num piscar de olhos, Kael foi envolvido por uma luz ofuscante, intensa como se a própria floresta o estivesse absorvendo.
2. A Jornada Interior
Antes que Kael pudesse reagir, os lobos saltaram sobre ele. Em vez de dor, Kael sentiu um puxão em sua consciência, como se estivesse sendo levado para um outro mundo dentro de si mesmo. Ele acordou em um campo infinito, onde paisagens de luz e escuridão se alternavam, também entre cores vivas e belíssimas.
"Aqui é onde Tu vais decidir," disse Xâman, surgindo de repente ao seu lado. "Tu deves confrontar suas memórias, seus medos e seus desejos mais profundos. Cada escolha alimentará um dos dois lobos, mas tu vais compreender no tempo certo".
Kael percebeu que cada passo que dava o levava a momentos de sua vida. Ele viu a si mesmo quando filhote, confortando sua irmã menor após a morte da mãe – o Lobo Branco uivou suavemente ao fundo. Em outra cena, viu-se mentindo para salvar a própria pele, enquanto o Lobo Negro soltava uma gargalhada sombria.
Conforme Kael atravessava as paisagens projetadas em sua mente, elas mudavam constantemente, como um sonho fluido. Em um momento, ele estava em uma cabana aquecida, rodeado por amigos e rindo ao redor de uma fogueira. Sentiu-se acolhido e seguro, mas então percebeu que a fogueira estava se apagando, e uma escuridão fria tomava conta do lugar. Ele tentou acender a chama novamente, mas quanto mais tentava, mais ela parecia apagar-se. De repente, o Lobo Negro surgiu das sombras, observando:
"Às vezes, é preciso deixar a escuridão ser o que é," o Lobo Negro disse. "Nem tudo pode ser controlado, Kael."
Em outra memória, Kael viu-se diante de uma encruzilhada. Um lado levava a uma cidade iluminada, com promessas de riquezas e glórias, enquanto o outro se abria para uma trilha sombria e tortuosa pela floresta. Ele hesitou, atraído pelo brilho da cidade, mas ao olhar para a trilha escura, percebeu um sentimento diferente – não de medo, mas de curiosidade. Foi então que o Lobo Branco apareceu ao seu lado.
"A luz nem sempre está onde parece," disse o Lobo Branco. "As maiores verdades são encontradas nas trilhas mais difíceis".
Cada memória e visão testava Kael de uma maneira diferente. Ele foi forçado a encarar não apenas seus erros e arrependimentos, mas também os momentos em que sua coragem o havia guiado. Ao lembrar-se de quando salvou um amigo de um rio furioso, percebeu que não era apenas um ato de bondade, mas também de determinação e força – qualidades do Lobo Negro. Quando viu a si mesmo cuidando de um animal ferido na floresta, sentiu a paz que o Lobo Branco trazia.
Quanto mais ele explorava, mais claro se tornava que os dois lobos não eram seres independentes separadas, mas sim aspectos complementares dele mesmo. Kael começou a entender que a verdadeira escolha não era sobre qual lobo alimentar, mas como equilibrar os dois dentro de si.
"Tu não podes viver apenas na luz, ou apenas na sombra," Xâman explicou, sua voz ecoando pelo campo infinito. "Tu deves aprender a caminhar entre elas, pois é isso que significa ser único."
A jornada parecia interminável, mas cada passo trazia um entendimento mais profundo. Kael não estava apenas se reconciliando com seus lobos; ele estava descobrindo sua verdadeira essência. Quando finalmente chegou ao centro do campo, viu os dois lobos esperando, calmamente, como se soubessem que ele estava pronto para o próximo passo.
3. O Encontro Final
Conforme Kael atravessou suas memórias, e percebeu algo surpreendente: os lobos não eram inimigos. Eles o seguiam, mas nunca atacavam diretamente. Era como se esperassem algo dele.
"Por que vós não lutam?" Kael perguntou, encarando os dois lobos.
"Nós não lutamos. Tu luta contra ti mesmo," respondeu o Lobo Branco.
"A questão não é qual de nós vencerá, mas qual de nós Tu aceitarás," completou o Lobo Negro. "Porque ambos somos parte de Ti".
Kael olhou para os lobos, buscando uma resposta. Ele viu em seus olhos reflexos de si mesmo: um lado marcado pela bondade, pela busca por justiça e pela empatia, enquanto o outro carregava ambição, coragem e impulsos de audácia que ele muitas vezes temia reconhecer.
Finalmente: "Eu não preciso escolher entre vocês," Kael redarguiu sua voz ganhando firmeza. "Eu preciso de ambos. O Lobo Branco me guia pela razão e pela serenidade, mas o Lobo Negro me dá a força para enfrentar os desafios. Sem os dois, eu estaria incompleto".
Os lobos se entreolharam, satisfeitos com a resposta. Então, aproximaram-se de Kael, cada um tocando sua testa com o focinho. Ele sentiu uma onda de energia percorrer seu corpo, como se luz e sombra se entrelaçassem dentro de si, formando algo novo: um equilíbrio poderoso e harmônico.
"Tu encontraste o caminho," disse o Lobo Branco. "Mas lembre-se, a jornada não termina aqui. O equilíbrio precisa ser mantido, e desafios virão."
"E quando os desafios vierem," completou o Lobo Negro, "Tu não estará mais sozinho. Tua força vem de aceitar quem Tu és."
Kael sorriu, sentindo uma grande confiança. Ele sabia que aquele momento seria o ponto de partida para algo maior, algo que ele ainda não podia compreender completamente, mas estava pronto para enfrentar e que certamente iria aprender a lidar, seja lá o que lhe aguardava no cominho.
4. A Aceitação
Ao aceitar essa verdade, Kael sentiu uma paz que nunca experimentara antes. A paisagem ao seu redor mudou; luz e sombra se mesclaram em harmonia. Quando abriu os olhos, estava de volta à clareira.
Os lobos o encararam pela última vez.
"Tu compreendeste, Guardião," disse o Lobo Branco.
"Agora, leve esse equilíbrio ao mundo," completou o Lobo Negro. Em seguida, ambos desapareceram na floresta, deixando Kael sozinho – mas não mais, perdido. Kael percebeu que algo dentro de si havia mudado profundamente. Ele podia ouvir, como nunca antes, o sussurro da floresta, o bater de asas dos pássaros e o ritmo pulsante da terra. Era como se estivesse conectado à essência de todas as coisas. Essa conexão o encheu de uma energia renovada, e ele soube que não apenas compreendia o equilíbrio, mas fazia parte dele.
Enquanto caminhava de volta para a aldeia, Kael experimentou um sentimento de gratidão – por seus erros, por suas lutas, e até mesmo por seus medos. Ele entendeu que o Lobo Negro não era um inimigo a ser derrotado, mas uma força necessária, assim como o Lobo Branco era um guia essencial. Juntos, eles formavam as partes que o tornavam um ser ´único.
Ao atravessar a entrada da aldeia, Kael foi recebido com curiosidade pelos aldeões. Algo nele estava diferente; seus olhos brilhavam com uma luz que parecia carregar tanto sabedoria quanto mistério. Ele sabia que sua missão não era apenas proteger o equilíbrio da floresta, mas ajudar cada habitante a descobrir e aceitar os lobos dentro de si. Porque, no fim, o verdadeiro guardião não é aquele que luta, mas aquele que une.
5. Epílogo
Kael retornou à aldeia, agora como o novo Guardião das Almas. Ele passou a ensinar os outros que a luta interna não é sobre destruir um lado, mas sobre aceitar e compreender a dualidade dentro de cada um. Porque no fim, não é qual lobo vence, mas como eles podem e devem coexistir em paz em cada folha que caiu, cada raio de sol que atravessava as copas das árvores.
Os anos passaram, e Kael envelheceu, mas a clareza continuou a ser um lugar de revelações e mudanças para aqueles que buscavam. Mesmo depois que Kael se foi, sua essência permaneceu na floresta. para sempre. Dizem que, em noites de lua cheia, é possível ouvir o eco distante da sua presença em suas caminhadas.