A Última Arca
Prólogo
Houve um tempo em que a Terra cantava. Suas florestas sussurravam segredos em folhas verdes, seus rios dançavam com risos cristalinos, e o vento carregava histórias de criaturas que caminhavam, voavam e rastejavam em harmonia. Os humanos, então, eram poucos, e seus corações batiam no mesmo ritmo do mundo frágeis, mas atentos, como pássaros antes da tempestade.
Mas o tempo mudou. As canções se tornaram lamentos. As florestas caíram sob machados famintos, os rios engasgaram com venenos, e o vento, agora seco, carregava apenas cinzas. Os humanos esqueceram como ouvir. Construíram torres que arranhavam o céu, rasgaram montanhas por pedras brilhantes e pescaram até os mares chorarem silêncio.
A Terra tentou avisá-los com trovões, com secas, com o vazio onde antes havia vida. Mas poucos escutaram. Numa praia esquecido, onde falésias esculpidas pelo sal enfrentavam um mar inquieto, uma última voz ecoou. Não era alta, nem clara, mas profunda, como o pulsar de um coração antigo. Ela não falava com palavras, mas com imagens: uma arca de madeira, maior que qualquer barco, flutuando sobre águas que engoliam o mundo.
Dentro dela, pares de olhos brilhavam asas, garras, escamas, pelos, todos confiando em alguém que ainda não sabia seu nome. A voz escolheu um jovem. Não porque fosse forte, ou sábio, ou destemido, mas porque ainda ouvia. Porque, mesmo num mundo que gritava por ganância.
Ele parava para sentir o vento, para tocar as conchas, para chorar pelos pássaros que não voltavam. Seu nome era Lira, e ela não estava pronta. Mas o mundo não espera. As águas já subiam, lentas e implacáveis, lambendo as costas com promessas de julgamento. E, no silêncio entre os trovões, a voz sussurrou: Construa a arca. Salve o que ainda pode ser salvo.
Gênero
- Ficção/Fantasia com elementos de aventura e drama.
- Público-alvo: Jovem adulto e adulto, com potencial para adaptação para leitores mais jovens e adolescentes.
Sinopse
Em um mundo à beira do colapso ambiental, uma jovem chamada Zuriel, descendente de uma linhagem esquecida de guardiões da natureza, recebe uma visão misteriosa: ela deve construir uma arca para salvar não apenas sua família, mas todas as criaturas vivas de um dilúvio iminente.
Sem compreender completamente sua missão, Zuriel, enfrenta a descrença de sua comunidade, a hostilidade de líderes gananciosos e os próprios conflitos internos, acompanhada por um grupo improvável de aliados, um velho carpinteiro, uma bióloga rebelde.
Um menino com dons enigmáticos e um lobo branco que parece entender mais do que revela, Zuriel, embarca numa jornada para reunir as criaturas do mundo e construir a arca antes que as águas cheguem. Mas o verdadeiro desafio não é apenas sobreviver ao dilúvio: é descobrir o que significa salvar um mundo que já está quebrado.
Capítulo 1: A Voz do Mar
Lira estava descalça na praia, as ondas lambendo seus tornozelos. O céu estava pesado, cinzento como chumbo, e o ar cheirava a sal e algo mais — algo antigo, como se a própria Terra estivesse prendendo o fôlego. Ela fechou os olhos, tentando ignorar o vazio que sentia desde que sua mãe partira, há dois anos, deixando-a com um colar de conchas e promessas quebradas.
"Você vai encontrar seu caminho, minha menina", dissera ela, antes de embarcar num barco que nunca voltou. Lira ainda usava o colar, mas as palavras pareciam tão frágeis quanto as conchas desgastadas pelo tempo. O vento soprou, frio e cortante, levantando areia contra sua pele. Lira abriu os olhos e olhou para o horizonte. O mar estava inquieto, as ondas quebrando com uma urgência que ela nunca vira antes.
Sua vila, Costa Gris, ficava a poucos metros dali, aninhada entre falésias erodidas e coqueiros tortuosos. As chaminés da fábrica de Magnus soltavam fumaça preta, manchando o céu. Redes de pesca, grandes demais, arrastavam corais partidos para a praia. Lira sentiu um aperto no peito. Tudo parecia errado, como se o mundo estivesse gritando, mas ninguém escutasse.
Foi então que aconteceu.
Um som — não exatamente uma voz, mas um chamado — ecoou dentro dela, profundo, como se viesse do fundo do mar. Construa a arca, dizia. As águas estão vindo. Lira congelou, o coração disparado. As palavras não eram claras, mas carregavam uma certeza que a fez estremecer. Ela olhou ao redor, esperando ver alguém, qualquer coisa que explicasse o que acabara de ouvir. Mas a praia estava vazia, exceto por gaivotas que grasnavam ao longe.
— Quem está aí? — perguntou, a voz engolida pelo vento.
Silêncio. Apenas o rugido do mar e o pulsar em seus ouvidos. Lira riu, nervosa, passando a mão pelos cabelos castanhos embolados. "Estou ficando louca", murmurou. Mas, no fundo, sabia que não era loucura. Era algo maior, algo que a assustava e atraía ao mesmo tempo. Ela voltou para a vila, os pés afundando na areia úmida. As casas de Costa Gris eram simples, feitas de madeira e barro, mas a fumaça da fábrica cobria tudo com uma camada de fuligem.
No centro da praça, homens descarregavam peixes de um barco, enquanto crianças corriam entre as barracas do mercado. Lira passou por eles sem olhar, o colar de conchas batendo contra o peito. Queria contar a alguém sobre o chamado, mas a quem? Seu pai, Tomé, passava os dias na taberna, afogando as lembranças da esposa perdida. Seus amigos?
Eles ririam, como sempre faziam quando ela falava dos pássaros que pareciam segui-la ou das árvores que pareciam sussurrar. Quando chegou em casa, uma cabana pequena com telhado de palha, Lira jogou-se na rede e fechou os olhos. Tentou esquecer o chamado, mas ele voltava, insistente, como uma correnteza. Construa a arca. Ela abriu os olhos, irritada. — Uma arca? — disse em voz alta. — Para quê? Para guardar o quê? Não sou carpinteira, não sou nada!
Um barulho na porta a fez pular. Ela se levantou, esperando ver um vizinho ou talvez o vento batendo a madeira. Mas, quando abriu a porta, seu coração parou.
Um lobo estava lá.
Não era um lobo comum. Sua pelagem era branca como espuma do mar, e seus olhos, de um cinza prateado, pareciam carregar o peso de mil histórias. Ele a encarava, imóvel, sem rosnar, sem recuar. Lira segurou a respiração. Lobos não existiam em Costa Gris — não havia florestas por perto, apenas rochas e sal. Como ele chegara ali?
— O que você quer? — perguntou, a voz trêmula.
O lobo inclinou a cabeça, como se entendesse. Então, sem aviso, virou-se e começou a caminhar em direção à praia. Lira hesitou. Tudo nela dizia para fechar a porta e esquecer aquilo. Mas algo mais forte — curiosidade, talvez, ou o mesmo instinto que a fazia ouvir o mar — a fez segui-lo.
O lobo a levou até as falésias, onde o vento era mais forte e o mar parecia rugir com raiva. Ele parou no topo de um penhasco, olhando para o horizonte. Lira subiu atrás dele, o colar batendo contra o peito. Quando chegou ao lado do animal, viu algo que a fez gelar.
O céu, antes cinzento, agora estava negro, cortado por relâmpagos que não faziam som. O mar se agitava, formando ondas que pareciam engolir a costa. E, no meio da tempestade, Lira viu uma imagem — não com os olhos, mas com a mente. Uma arca, imensa, feita de madeira polida, flutuando sobre águas infinitas.
Dentro dela, animais de todos os tipos: pássaros coloridos, felinos com olhos brilhantes, tartarugas lentas, cobras reluzentes. E, no convés, ela mesma, Lira, com o lobo branco ao seu lado. A visão desapareceu tão rápido quanto veio. Lira caiu de joelhos, ofegante. O lobo a observava, como se esperasse algo. — O que está acontecendo comigo? — sussurrou ela.
Naquela noite, deitada na rede, Lira não dormiu. A imagem da arca queimava em sua mente. Ela sabia que não podia ignorar o chamado, mas também sabia que não podia enfrentá-lo sozinha. Precisava de ajuda, de alguém que acreditasse nela — ou, pelo menos, de alguém que não a chamasse de louca.
No dia seguinte, ela foi até a oficina de Téo, o velho carpinteiro que morava na saída da vila. Téo era uma figura estranha: barba branca, olhos que pareciam sempre rir, e uma mania de contar histórias que ninguém levava a sério. Diziam que ele construíra barcos que navegavam sozinhos, mas Lira nunca soubera se era verdade.
Quando entrou na oficina, o cheiro de madeira e resina a envolveu. Téo estava curvado sobre uma tábua, martelando com precisão. Ele ergueu os olhos e sorriu. — Lira! Faz tempo que não vejo você por aqui. Veio pedir um barco ou só fugir do seu pai? Ela hesitou, torcendo o colar entre os dedos. — Téo… já ouviu falar de uma arca?
O velho parou, o martelo suspenso no ar. Seus olhos brilharam com algo que Lira não conseguiu decifrar — curiosidade, talvez, ou reconhecimento. — Uma arca, você diz? — Ele baixou o martelo e se aproximou, a voz agora grave. — Conte-me tudo, menina. E não deixe nada de fora.
Lira respirou fundo e começou a falar. Sobre o chamado, a visão, o lobo. Enquanto falava, sentia o peso no peito diminuir, como se, ao compartilhar a história, ela finalmente começasse a acreditar nela. Téo ouviu em silêncio, sem interromper. Quando ela terminou, ele coçou a barba e olhou para o horizonte, onde o mar ainda rugia.
— Bem — disse ele, por fim —, parece que o mundo está falando com você, Lira. E, quando o mundo fala, é melhor escuta. Lira acordou com o som do mar. Não o murmúrio gentil que embalava Costa Gris nas manhãs calmas, mas um rugido rouco, como se as ondas estivessem brigando com a terra. Ela se sentou na rede, o colar de conchas tilintando contra o peito. A cabana estava escura, exceto por uma nesga de luz cinzenta que entrava pela janela de madeira.
O ar cheirava a sal e a algo mais — algo pesado, como terra molhada antes de uma tempestade. Ela esfregou os olhos, tentando afastar o peso do sonho que ainda a perseguia. Não era um sonho comum, daqueles que desvanecem com o amanhecer. Era vívido, quase real: uma arca flutuando em águas escuras, tão grande que parecia engolir o horizonte.
Animais a bordo — pássaros de penas brilhantes, cervos com chifres como galhos, serpentes que reluziam como rios vivos. E ela, Lira, no convés, com o vento nos cabelos e uma voz sem rosto dizendo: Salve o que ainda pode ser salvo. — Só um sonho — murmurou ela, mas as palavras soaram frágeis, como se tentasse convencer a si mesma.
Lira se levantou, os pés descalços tocando o chão frio de barro. Vestiu uma túnica surrada e amarrou os cabelos castanhos, ainda embolados pelo sono. A cabana estava silenciosa — seu pai, Tomé, provavelmente não voltara da taberna na noite anterior. Desde que a mãe desaparecera no mar, ele vivia mais entre garrafas do que em casa. Lira não o culpava, não exatamente. Mas sentia o vazio que ele deixara, como uma ferida que não cicatrizava.
Ela saiu para a praia, precisando do ar fresco para clarear a mente. Costa Gris acordava devagar, com o cheiro de peixe seco e o clangor distante da fábrica de Magnus, que cuspia fumaça preta no céu. As falésias, esculpidas por anos de vento e sal, erguiam-se como sentinelas cansadas ao redor da vila. Lira caminhou até a beira d'água, onde as ondas lambiam a areia com uma urgência que a fez parar. O mar parecia diferente hoje, mais vivo, mais… zangado.
Ela fechou os olhos, deixando o vento bagunçar seus cabelos. Foi então que sentiu. Não um som, mas uma presença, como se algo a observasse do fundo do oceano. Seu coração acelerou. Construa a arca, disse uma voz — não em seus ouvidos, mas em seus ossos, grave e antiga como as rochas sob seus pés. As águas estão vindo.
Lira abriu os olhos, ofegante. O mar estava calmo agora, mas o céu se fechava em nuvens escuras, pesadas como promessas quebradas. Ela olhou ao redor, esperando ver alguém, qualquer coisa que explicasse o que acabara de ouvir. Mas a praia estava vazia, exceto por um grupo de gaivotas que bicavam um peixe morto na areia.
— Quem é você? — perguntou ao vento, a voz tremendo. — O que quer de mim?
Nenhuma resposta. Apenas o silvo do mar e o pulsar em suas têmporas. Lira riu, nervosa, passando a mão pelo colar de conchas. "Estou falando com o mar agora", pensou. "Se contar isso a alguém, vão me trancar."
Ela virou para voltar à vila, decidida a esquecer aquilo tudo. Mas, antes que desse o primeiro passo, um movimento na falésia à sua direita a fez congelar. Algo estava lá, escondido entre as rochas. Não era humano — grande demais, ágil demais. Lira segurou a respiração, o instinto gritando para correr, mas a curiosidade a prendendo no lugar.
Então, ele saiu das sombras.
Um lobo. Sua pelagem era branca, tão pura que parecia brilhar sob a luz fraca do amanhecer. Seus olhos, de um cinza prateado, a encaravam com uma intensidade que a fez sentir pequena, como se ele soubesse mais sobre ela do que ela mesma. Lira nunca vira um lobo antes — não em Costa Gris, onde o maior animal era um cão sarnento que rondava o mercado. Mas ali estava ele, majestoso e impossível, como algo saído de uma das histórias que sua mãe contava.
— O que… — começou ela, mas as palavras morreram em sua garganta.
O lobo não rosnou, não se moveu. Apenas a observou, como se esperasse algo. Então, lentamente, virou-se e começou a caminhar em direção às falésias, parando uma vez para olhar para trás, como se a convidasse a segui-lo. Lira hesitou. Tudo nela dizia para voltar para casa, trancar a porta e fingir que nada disso acontecera. Mas a voz — Construa a arca — ainda ecoava em sua mente, e o lobo parecia… ligado a ela, de alguma forma.
Contra todo o bom senso, ela o seguiu.
O lobo a levou por um caminho estreito entre as rochas, onde o vento uivava como um coro distante. Lira tropeçava nas pedras, o colar batendo contra o peito, mas não tirava os olhos do animal. Ele se movia com uma graça quase sobrenatural, como se conhecesse cada curva do terreno. Quando chegaram ao topo da falésia mais alta, o lobo parou e olhou para o mar. Lira se aproximou, ofegante, e seguiu seu olhar.
O horizonte estava negro, cortado por relâmpagos mudos que dançavam entre as nuvens. O mar se agitava, formando ondas que pareciam querer engolir a costa. E então, por um instante, Lira viu — não com os olhos, mas com a alma. A arca, exatamente como no sonho, flutuando em um mundo de água. Animais a bordo, seus olhos brilhando com confiança. E ela, Lira, no centro de tudo, com o lobo branco ao seu lado.
A visão sumiu, deixando-a tonta. Ela caiu de joelhos, a respiração curta. O lobo a observava, imóvel, como se dissesse: Agora você sabe. Lira apertou o colar, as conchas cortando sua palma. — Eu não sei de nada — sussurrou. — Não sou ninguém. Por que eu?
Capítulo 2 - Chamado à Beira-mar
Lira respirou fundo, o ar salgado do mar queimando seus pulmões. Seus pés descalços tocaram a areia fria, e ela olhou para o horizonte, onde o céu cinzento se fundia com as ondas inquietas. O lobo se fora, mas sua presença ainda pairava, como um eco que se recusava a morrer. Ela apertou o pingente em forma de concha que pendia de seu pescoço, um hábito de quando a incerteza a dominava.
A concha era a única coisa que restara de sua mãe, uma mulher que o mar levara antes que Lira pudesse conhecê-la de verdade. "Por que eu?" murmurou, a voz engolida pelo vento. Não havia resposta. Apenas o som das ondas quebrando contra as rochas e o grito distante de uma gaivota. Mas, no fundo de sua mente, algo se agitava — uma memória que não era sua, um fragmento de sonho que não explicava.
Ela viu a arca novamente, como na visão que tivera na noite anterior: uma estrutura antiga, coberta de musgo e gravada com símbolos que pareciam pulsar com vida própria. E ao redor dela, sombras que dançavam, figuras sem rosto que sussurravam seu nome. Lira sacudiu a cabeça, tentando afastar a imagem. "É só minha imaginação," disse a si mesma, mas as palavras soaram vazias. Ela sabia que não era.
Não depois do lobo. Não depois do modo como seus olhos a haviam perfurado, como se conhecessem cada segredo que ela mesma ignorava. Com passos hesitantes, ela começou a descer o caminho de volta à vila. A trilha era estreita, esculpida na encosta rochosa, e o vento parecia querer empurrá-la para o abismo. Enquanto caminhava, pensava nas histórias que os anciãos contavam à noite, junto à fogueira.
Falavam de tempos antigos, quando o mar era mais do que água — era um guardião, um deus, um devorador. Falavam de escolhidos, pessoas marcadas para carregar fardos que não compreendiam. Lira sempre rira dessas histórias, chamando-as de contos para assustar crianças. Agora, elas não pareciam tão absurdas.
Ao chegar à vila, o sol já estava baixo, tingindo o céu de um vermelho feroz. As casas de pedra se amontoavam ao longo da costa, resistindo ao sal e ao tempo. Algumas pessoas a cumprimentaram com acenos, mas seus olhares eram cautelosos. Lira sempre fora diferente — a garota que falava com o vento, que passava horas olhando o mar como se ele pudesse responder.
Eles a toleravam, mas não a entendiam. — Lira! — Uma voz a tirou de seus pensamentos. Era Milo, seu amigo de infância, correndo em sua direção com um sorriso torto. Ele era alto, desengonçado, com cabelo castanho bagunçado pelo vento. — Onde você esteve? Minha mãe disse que te viu subindo as falésias de novo. Tá querendo virar comida de gaivota? Lira forçou um sorriso. — Só precisava pensar.
Milo ergueu uma sobrancelha, desconfiado. — Pensar, é? Você anda com essa cara de quem viu um fantasma. O que tá acontecendo? Ela hesitou. Como poderia explicar o lobo, a arca, o peso que sentia no peito? Milo era leal, mas ele riria, diria que ela estava inventando coisas. Ou pior: acreditaria e tentaria protegê-la, como sempre fazia. E Lira não queria arrastá-lo para algo que nem ela entendia.
— Nada de mais — respondeu, desviando o olhar. — Só o mar me chamando, como sempre.
Milo bufou, mas não insistiu. — Bom, se o mar te convencer a fazer algo estúpido, me avisa. Não quero ter que pescar você do fundo do oceano. Eles riram, mas a risada de Lira era frágil, como vidro prestes a quebrar. Enquanto caminhavam juntos pela vila, ela não conseguia afastar a sensação de que algo a observava. Não o lobo, não exatamente, mas algo maior. Algo que estava no mar, no céu, na própria terra sob seus pés.
Naquela noite, deitada em sua cama estreita, Lira sonhou novamente. A arca estava lá, mas agora ela estava mais perto, tão perto que podia tocar os símbolos entalhados em sua superfície. Eles brilhavam, quentes sob seus dedos, e uma voz ecoava, antiga e profunda como o próprio oceano. "Você não pode fugir," dizia. "O tempo está chegando."
Lira acordou com um grito preso na garganta, o coração disparado. Lá fora, o mar rugia, mais alto do que nunca, como se respondesse à voz em seu sonho. Ela se levantou, trêmula, e caminhou até a janela. A lua cheia pairava sobre o horizonte, iluminando as ondas que se agitavam como se estivessem vivas.
E então ela viu: uma sombra no mar, vasta e indistinta, movendo-se sob a superfície. Não era um barco, não era uma criatura conhecida. Era algo antigo, algo que não pertencia a este mundo. Lira apertou a concha em seu pescoço até sentir dor. Ela não podia mais fingir que não ouvia. O chamado havia começado.
A brisa salgada parecia carregar um murmúrio, um eco profundo que vibrava em seus ossos. Lira deu um passo hesitante em direção à beira do penhasco, os olhos fixos na sombra que ondulava sob as ondas. Seu coração batia descompassado, como se respondesse a um ritmo que não era seu.
A concha em seu pescoço aqueceu, pulsando como um segundo coração. Ela sabia que descer até o mar seria mergulhar no desconhecido, mas o chamado era mais forte que o medo. Com um último fôlego, Lira soltou a rocha sob seus dedos e deixou o vento guiá-la para baixo, em direção ao abismo que a aguardava.
Capítulo 3: O Chamado do Abismo
Lira caiu, o vento uivando em seus ouvidos como um coro de vozes antigas. A concha em seu pescoço vibrava intensamente, cada pulso enviando arrepios por sua pele, como se estivesse viva, sussurrando segredos que ela ainda não compreendia. O mar abaixo se aproximava rápido, um espelho negro salpicado de estrelas refletidas, e por um instante ela se perguntou se estava caindo para a morte ou para algo muito maior.
Seus pés tocaram a água primeiro, gelada como uma lâmina, mas ao invés de afundar, a superfície cedeu suavemente, envolvendo-a como mãos gentis. Ela mergulhou, o frio inicial dando lugar a uma estranha tepidez. A concha brilhou, lançando um halo de luz esverdeada que iluminou as profundezas. Ao seu redor, o mar não era apenas água — era vivo, pulsando com correntes que pareciam dançar ao ritmo de sua própria respiração.
Lira nadou para baixo, guiada por uma certeza que não explicava. Sombras moviam-se ao longe, formas indistintas que poderiam ser peixes, algas... ou algo mais. A concha vibrava mais forte agora, puxando-a em direção a uma fenda no fundo do oceano, onde a escuridão parecia engolir até a luz que ela carregava. Um som ecoou, grave e ressonante, como o canto de uma baleia, mas carregado de palavras que ela quase entendia. "Você veio," parecia dizer.
"Você sempre esteve destinada a vir." Ela hesitou, os pulmões começando a queimar, o peso da água pressionando seu peito. O medo voltou, sussurrando que ainda podia voltar, subir à superfície, à segurança da vila onde as lendas eram apenas histórias contadas à noite. Mas a concha pulsava, quente contra sua pele, e Lira sabia que não havia escolha. Não realmente. Com um impulso final, ela nadou em direção à fenda.
A escuridão a engoliu, e por um momento, tudo foi silêncio. Então, uma luz suave emergiu, não da concha, mas de algum lugar mais profundo, como se o próprio coração do mar estivesse se abrindo para ela. E ali, na penumbra, algo — ou alguém — a esperava. A luz cresceu, suave e hipnótica, como se o mar estivesse respirando com ela. Lira flutuava agora, não mais nadando, mas sendo puxada gentilmente por uma corrente invisível.
A concha em seu pescoço não pulsava mais — ela cantava, um zumbido baixo que ecoava em seus ossos, misturando-se ao som distante que ainda reverberava na fenda. "Você está aqui," as palavras pareciam formar-se em sua mente, não ditas, mas sentidas. A fenda se abriu em uma vasta câmara submersa, suas paredes cobertas por corais luminescentes que pulsavam em tons de azul e violeta.
No centro, suspensa como uma joia em um véu de água, havia uma figura. Não era humana, mas também não era estranha. Sua pele reluzia como madrepérola, os olhos grandes e profundos como o próprio abismo. Longos filamentos flutuavam ao redor de sua cabeça, movendo-se como se dançassem com as correntes.
— Lira — a voz da criatura não veio de sua boca, mas de todos os lados, vibrando na água. — Portadora da concha. Você ouviu o chamado.
Lira quis responder, mas seus pulmões protestaram, o ar que ela segurava quase acabando. Ainda assim, ela não sentia pânico. Algo na presença da criatura a acalmava, como se o medo não tivesse lugar ali. Ela tocou a concha instintivamente, e um fio de ar fresco escapou dela, enchendo seus pulmões. Surpresa, ela respirou, os olhos fixos na figura à sua frente.
— Quem... o que você é? — perguntou, sua voz abafada pela água, mas clara o suficiente.
A criatura inclinou a cabeça, um gesto quase humano. — Eu sou a Guardiã do Véu. E você, Lira, é a chave. A concha que carrega não é apenas um presente. É um pacto.
— Um pacto? — Lira franziu a testa, o peso da palavra caindo sobre ela. Eu não escolhi isso. Só... senti que precisava vir.
— E ainda assim, você veio — a Guardiã respondeu, seus olhos brilhando com algo que poderia ser um sorriso.
A concha escolheu você porque seu coração já pertence ao mar. Mas o caminho à frente não é leve. O Véu está enfraquecendo, e com ele, o equilíbrio entre o seu mundo e o nosso.
Lira balançou a cabeça, confusa. — Véu? Equilíbrio? Eu não entendo.
A Guardiã ergueu uma mão, e a água ao redor delas se agitou, formando imagens que flutuavam como miragens. Lira viu sua vila, as ondas calmas da superfície, as redes dos pescadores. Então, a visão mudou: o mar se erguia em fúria, engolindo a costa, enquanto formas sombrias emergiam das profundezas, os olhos brilhando com uma fome antiga.
— O Véu separa o que deve permanecer separado — disse a Guardiã. — Mas há aqueles que desejam rompê-lo, despertar o que dorme. Sem você, Lira, o mar reclamará tudo.
Lira sentiu um frio que não vinha da água. — E se eu não quiser? Se eu voltar agora? A Guardiã a encarou, e pela primeira vez, sua voz carregou um tom de tristeza. — Você pode voltar. Mas o chamado não silencia. E o que está vindo não espera. A concha aqueceu novamente, e Lira sentiu um puxão, como se o próprio mar estivesse pedindo que ela ficasse. Ela olhou para a Guardiã, para as imagens que ainda pairavam, e soube que, fosse qual fosse o preço, sua vida na superfície nunca mais seria a mesma.
— O que eu tenho que fazer? — perguntou finalmente, a voz firme apesar do tremor em seu peito.
A Guardiã sorriu, e a câmara brilhou mais forte. — Primeiro, você deve lembrar quem você é. Antes que Lira pudesse perguntar o que isso significava, a luz a engoliu, e o mundo dissolveu-se em um turbilhão de memórias que não eram suas — ou talvez fossem.
Capítulo 4: O Recanto das Sombras
Lira flutuava na superfície, o mar calmo demais, quase como se estivesse prendendo a respiração. A concha em seu pescoço pulsava suavemente, apontando para o horizonte onde o céu se fundia com uma escuridão que parecia engolir as estrelas. O Recanto das Sombras. O nome sozinho fazia sua pele arrepiar, mas ela sabia que não havia como voltar atrás. Não depois do que vira, do que sentira na câmara da Guardiã.
Ela nadou até a praia, os pés afundando na areia fria enquanto o vento trazia o cheiro salgado do mar. A vila dormia ao longe, as luzes das casas tremulando como velas. Por um momento, Lira quis correr até lá, bater na porta de sua mãe, contar tudo — as visões, a Guardiã, o Devorador. Mas o que diria? Que o mar a escolhera para salvar o mundo? Parecia loucura, mesmo para ela.
Em vez disso, ela pegou um pequeno barco que seu irmão usava para pescar, escondido entre as rochas. Era velho, mas confiável, e Lira sabia manejá-lo desde criança. Enquanto remava para longe da costa, a concha guiava seus movimentos, aquecendo sempre que ela ajustava o curso na direção certa. O mar permanecia estranhamente quieto, sem ondas, sem gaivotas — só o som dos remos cortando a água.
Horas se passaram, ou talvez minutos; o tempo parecia escorregar como areia sob seus dedos. O céu escureceu ainda mais, e o ar ficou pesado, carregado de uma umidade que grudava na pele. À frente, uma névoa densa se erguia, engolindo o horizonte. A concha vibrou, quase ardendo, e Lira soube: o Recanto das Sombras estava próximo.
Ela amarrou os remos e deixou o barco deslizar pela corrente. A névoa a envolveu, fria e pegajosa, apagando até o brilho das estrelas. O silêncio era tão absoluto que Lira ouvia o próprio coração batendo. Então, um som baixo cortou o ar — um arrastar lento, como algo enorme se movendo sob a água.
Lira agarrou os lados do barco, os olhos fixos na escuridão. A concha brilhou, lançando um fraco halo verde que mal cortava a névoa. Algo roçou o casco, fazendo a madeira gemer. Ela segurou o fôlego, o medo subindo como bile. "É só um peixe," tentou dizer a si mesma, mas sabia que não era. O mar estava vivo ali, e não era amigável.
— Mostre-se — sussurrou, mais para se encorajar do que esperando resposta.
Para sua surpresa, o arrastar parou. A névoa se abriu ligeiramente, revelando uma forma indistinta à frente — não uma rocha, não um recife, mas algo que parecia pulsar, como um coração gigantesco coberto de algas escuras. O primeiro pilar. A concha cantou, um som agudo que ecoou na névoa, e o pilar respondeu com um brilho fraco, como se a reconhecesse.
Lira remou até ele, o barco balançando com cada movimento. Quando estava perto o suficiente, estendeu a mão, os dedos roçando a superfície do pilar. Era quente, vibrante, e por um instante, ela viu flashes de novo — o mar calmo, o Véu brilhando, sua vila a salvo. Mas então, outra imagem: olhos amarelos na escuridão, dentes que poderiam esmagar montanhas, e uma voz que rugia: *Você não pertence aqui.*
Ela puxou a mão de volta, o coração disparado. A névoa se fechou novamente, e o arrastar voltou, mais próximo agora. Algo estava vindo, rápido. A concha pulsava freneticamente, como um aviso. Lira olhou para o pilar, sabendo que precisava ativá-lo, mas como? A Guardiã não dissera o que fazer, só que a concha a guiaria.
— Me ajude — murmurou para a concha, apertando-a contra o peito.
Um calor explodiu dela, e a concha brilhou tão intensamente que a névoa recuou. O pilar respondeu, seu brilho se intensificando, e uma rachadura na superfície se abriu, revelando um núcleo pulsante de luz. Lira sentiu um puxão, como se o pilar a chamasse. Sem pensar, ela pressionou a concha contra o núcleo.
A luz a cegou, e o mar rugiu. O pilar vibrou, enviando ondas de energia que fizeram o barco tombar. Lira caiu na água, mas não afundou — a concha a segurava, flutuando como se a protegesse. Quando abriu os olhos, o pilar estava vivo, brilhando como um farol, e a névoa se dissipava.
Mas o arrastar não parou. Na escuridão além do pilar, algo se movia — uma forma longa, sinuosa, com escamas que reluziam como óleo. Não era o Devorador, mas era algo dele, um servo, talvez. Seus olhos encontraram os dela, e Lira sentiu um frio que não explicava.
— Você ativou o primeiro — disse uma voz, não da criatura, mas dentro de sua cabeça. — Mas não será tão fácil com os outros. O mar não é seu, chave.
Lira nadou de volta ao barco, o coração na garganta. O pilar brilhava, o Véu estava mais forte — ela sentia isso. Mas a criatura ainda a observava, e enquanto remava para longe, sabia que o Recanto das Sombras era só o começo.
Capítulo 5: Ecos do Primeiro Passo
Lira remava com força, o barco cortando a água enquanto o brilho do pilar ficava para trás, engolido pela névoa que se fechava novamente. A concha em seu pescoço havia silenciado, mas ainda estava quente, como se guardasse o eco do que acontecera. Seu corpo tremia — não de frio, mas do peso do que enfrentara. Aquela criatura, com seus olhos que pareciam ver através dela, e a voz que falara em sua mente...
Não era o Devorador, mas era um aviso. O mar estava acordando, e nem tudo o que se movia nas profundezas queria que ela tivesse sucesso. O céu clareava lentamente, as estrelas cedendo lugar a um amanhecer cinzento. Lira olhou para a vila ao longe, agora apenas uma sombra na costa. Parte dela queria voltar, ancorar o barco e fingir que tudo isso era um sonho.
Mas a concha zumbia suavemente, como se a lembrasse de que o caminho para casa não existia mais — não até que terminasse o que começara. Ela parou de remar, deixando o barco flutuar. Precisava pensar. A Guardiã falara de três pilares, mas só indicara o primeiro. Onde estavam os outros? E como encontrá-los se o mar parecia cheio de olhos vigilantes? Lira tocou a concha, buscando respostas, mas ela permaneceu quieta, oferecendo apenas um leve calor que a acalmava.
— Você disse que me guiaria — murmurou, quase em reprovação. — Então me mostre o próximo passo.
Como se respondesse, a concha vibrou uma vez, e uma sensação a puxou, não para o horizonte, mas para dentro de si. Lira fechou os olhos, e uma imagem surgiu em sua mente: um arquipélago de ilhas negras, cercadas por redemoinhos que rugiam como feras. No centro, uma caverna submersa pulsava com uma luz dourada, diferente do brilho verde do primeiro pilar.
A visão trouxe um nome, sussurrado como um segredo: *As Presas do Mar*. Lira abriu os olhos, o coração acelerado. As Presas do Mar eram uma lenda na vila, um lugar que os pescadores evitavam, dizendo que as correntes ali engoliam barcos inteiros. Mas a concha não mentia. O segundo pilar estava lá, e ela precisava ir.
Antes de partir, Lira verificou o barco. Tinha água e algumas frutas secas que seu irmão guardava para longas pescarias. Não era muito, mas teria que bastar. Ela ajustou o curso, guiada pela concha, e começou a remar na direção das Presas. O mar, agora agitado por ondas pequenas, parecia menos hostil à luz do dia, mas Lira não se iludia. O que quer que a observara no Recanto das Sombras ainda estava por aí, esperando.
À medida que o sol subia, o cansaço pesava. Seus braços doíam, e a adrenalina do confronto com o pilar dava lugar a uma exaustão profunda. Mas havia algo mais — uma dúvida que crescia como uma sombra. E se a Guardiã estivesse errada? E se ela não fosse forte o suficiente? As visões do Devorador, os olhos amarelos, o rugido que prometia destruição... tudo isso a perseguia, misturado às memórias que não eram suas, mas que pareciam querer contar uma história.
Lira balançou a cabeça, tentando afastar os pensamentos. Foco. Precisava de foco. As Presas do Mar estavam à frente, e o segundo pilar era o próximo passo. Mas enquanto remava, um som novo cortou o ar — não o arrastar da criatura, mas algo mais leve, como um canto. Era distante, flutuando sobre as ondas, e fazia sua pele formigar.
Ela parou, os remos suspensos. O canto não era humano, mas também não era como o da concha. Era doce, quase irresistível, puxando-a para uma direção diferente, onde o mar brilhava com reflexos estranhos. A concha permaneceu fria, sem reagir, e isso a deixou inquieta. Era uma armadilha? Ou algo que ela precisava entender?
Lira hesitou, os olhos fixos no brilho ao longe. As Presas do Mar eram seu destino, mas o canto prometia respostas — ou talvez perigo. Ela agarrou os remos, dividida. Seguir o plano ou investigar o desconhecido? Cada escolha parecia carregar um risco que ela mal podia medir. Então, o canto cresceu, e com ele veio uma palavra, clara como um sino em sua mente: *Lira*.
Capítulo 6: O Canto das Profundezas
Lira congelou, os remos escorregando de suas mãos enquanto a palavra ecoava em sua mente. *Lira*. Não era só um som — era um chamado, tão íntimo que parecia conhecer cada canto de sua alma. O brilho ao longe pulsava, sincronizado com o canto, e o mar ao redor começou a ondular, como se respondesse àquela voz. A concha em seu pescoço permanecia fria, inerte, e isso a assustava mais do que gostaria de admitir. Sem sua orientação, ela se sentia à deriva, vulnerável.
— Quem é você? — perguntou ao vento, sabendo que não haveria resposta clara. Ainda assim, o canto continuou, doce e insistente, puxando-a como uma corrente invisível.
Lira olhou para o horizonte, onde as Presas do Mar aguardavam, escondidas além da curva do mar. O segundo pilar era sua missão, o caminho que a Guardiã traçara. Mas o canto... ele não a deixava pensar com clareza. Era como se prometesse algo que ela nem sabia que queria — respostas, talvez, ou um vislumbre do que realmente era. Contra seu bom senso, ela ajustou o barco, virando na direção do brilho.
Enquanto remava, o mar mudou. As ondas ficaram mais suaves, quase espelhadas, refletindo o céu em tons de prata e ouro. O canto se intensificou, agora acompanhado por outros sons — risadas leves, sussurros que pareciam vir de baixo d'água. Lira sentiu um arrepio, mas não de medo. Era como se o mar estivesse vivo de uma forma que ela nunca sentira antes, não como no Recanto das Sombras, mas algo... acolhedor.
O brilho revelou-se uma pequena ilha, não maior que um recife, coberta por algas que brilhavam como estrelas caídas. No centro, uma lagoa cristalina refletia a luz, e foi dela que o canto parecia surgir. Lira ancorou o barco na areia macia e desceu, os pés descalços sentindo o pulsar da ilha, como se ela tivesse um coração próprio.
— Mostre-se — disse, a voz firme, mas com um tremor que traía sua incerteza.
O canto parou abruptamente, e o silêncio que se seguiu foi quase ensurdecedor. Então, a lagoa ondulou, e dela emergiram três figuras. Eram semelhantes à Guardiã, com pele de madrepérola e olhos profundos, mas menores, mais delicadas, os corpos envoltos em véus de água que dançavam ao redor delas. Elas flutuavam sobre a lagoa, observando Lira com curiosidade.
— Você veio — disse a figura do meio, sua voz como o tilintar de conchas. — A portadora da concha. Sabíamos que o mar a traria até nós.
Lira deu um passo atrás, instintivamente tocando a concha, que ainda não reagia. — Quem são vocês? Por que me chamaram?
— Somos as Tecelãs — respondeu a da esquerda, com um sorriso que mostrava dentes afiados como coral. — Guardiãs dos fios do destino. O mar nos pediu para guiá-la, Lira, pois seu caminho é mais perigoso do que imagina.
— O pilar... — Lira começou, mas a da direita a interrompeu, levantando uma mão.
— O pilar nas Presas do Mar espera, mas você não está pronta. A concha a trouxe até aqui porque há algo que precisa ver antes.
Lira franziu a testa, desconfiada. — A Guardiã não falou de vocês. Como sei que posso confiar? As três riram, um som que fez a lagoa tremeluzir. — A Guardiã vê o Véu, mas nós vemos os fios que o sustentam — disse a do meio. — Olhe para a lagoa, Lira. Veja o que o mar guardou para você. Relutante, Lira se aproximou da borda da lagoa. A água era tão clara que parecia não ter fundo, mas quando olhou, viu imagens se formando, como as visões da concha.
Ela viu sua mãe, jovem, segurando a concha com lágrimas nos olhos, falando com uma figura sombria que Lira não reconheceu. Então, a cena mudou: uma tempestade engolindo a vila, ondas altas como montanhas, e no centro, Lira, de pé, com a concha brilhando, mas seus olhos vazios, como se algo a controlasse. Ela recuou, o coração disparado. — O que é isso? O futuro?
— Um futuro — corrigiu a Tecelã da esquerda. — Os fios do destino não são fixos, mas todos convergem para você. O Véu, o Devorador, a concha... tudo está entrelaçado. Se falhar nas Presas do Mar, esse será o preço.
— E se eu tiver sucesso? — Lira perguntou, a voz rouca.
As Tecelãs trocaram olhares, e a do meio respondeu: — Então outro fio se formará. Mas o sucesso exige sacrifício, Lira. O mar sempre cobra. Antes que Lira pudesse perguntar o que isso significava, a lagoa brilhou intensamente, e uma dor aguda atravessou seu peito. Ela caiu de joelhos, a concha finalmente acordando, queimando contra sua pele. As Tecelãs flutuaram mais perto, suas vozes se misturando em um sussurro.
— Vá para as Presas do Mar — disseram em uníssono. — Mas leve isso com você: a concha é sua força, mas também sua corrente. Cuidado com o que ela pede.
A luz da lagoa a engoliu, e quando Lira piscou, estava de volta no barco, o mar agitado ao seu redor. A ilha havia desaparecido, como se nunca tivesse existido. A concha pulsava, apontando para as Presas do Mar, mas agora carregava um peso novo, como se soubesse o que Lira vira. Ela agarrou os remos, o canto das Tecelãs ainda ecoando em sua mente. As Presas do Mar estavam próximas, e com elas, o segundo pilar — e talvez o sacrifício que as Tecelãs haviam prometido.
Capítulo 7: As Presas do Mar
Lira remava com determinação, os braços ardendo de esforço enquanto o horizonte se tornava mais nítido. As Presas do Mar surgiam como dentes negros contra o céu, ilhas afiadas que pareciam rasgar o próprio mar. Redemoinhos giravam ao redor delas, rugindo com uma fúria que fazia o barco tremer. A concha em seu pescoço pulsava com urgência, quente contra sua pele, confirmando o que ela já sabia: o segundo pilar estava próximo, escondido em algum lugar naquele caos de rochas e correntes.
O encontro com as Tecelãs ainda pesava em sua mente. As visões na lagoa — sua mãe, a tempestade, seus próprios olhos vazios — eram como farpas cravadas em seus pensamentos. E as palavras finais, sobre sacrifício e a concha ser uma corrente... Lira queria ignorá-las, focar apenas no pilar, mas a dúvida a corroía. E se o preço fosse alto demais? E se ela estivesse caminhando para uma armadilha tecida pelo próprio mar?
O barco balançou violentamente, arrancando-a de seus pensamentos. Um redemoinho menor a puxava, as ondas lambendo a madeira com fome. Lira agarrou os remos, lutando para manter o controle, mas o mar era mais forte. A concha brilhou, e ela sentiu um impulso claro: *mergulhe*. Era loucura — abandonar o barco significava perder sua única maneira de voltar. Mas a confiança na concha, mesmo abalada, venceu o medo.
Com um fôlego profundo, Lira pulou na água. O frio a envolveu, mas a concha aqueceu, guiando-a para baixo enquanto o redemoinho rugia acima. Ela nadou contra a corrente, os pulmões queimando, até que a escuridão deu lugar a uma caverna submersa, sua entrada marcada por rochas que pareciam dentes de verdade. A concha vibrou, e uma luz dourada pulsou lá dentro, chamando-a.
Lira entrou, a pressão da água aliviando como se a caverna a estivesse esperando. As paredes brilhavam com cristais que refletiam a luz da concha, criando um mosaico de sombras e cores. No centro, suspenso como uma chama líquida, estava o segundo pilar — menor que o primeiro, mas vibrante, seu núcleo pulsando em tons de âmbar.
Ela se aproximou, cautelosa. O silêncio era pesado, quebrado apenas pelo zumbido da concha. Como no Recanto das Sombras, ela pressionou a concha contra o núcleo do pilar. A luz explodiu, dourada e quente, e Lira sentiu uma onda de energia atravessá-la, como se o próprio mar estivesse cantando em suas veias. O pilar brilhou intensamente, e por um instante, ela viu o Véu em sua mente — mais forte, suas rachaduras começando a se fechar.
Mas então, o chão da caverna tremeu. Um rugido baixo ecoou, não de água, mas de algo vivo. Lira girou, a concha pulsando em alerta. Das sombras da caverna, uma criatura emergiu — não como a do Recanto, mas maior, com tentáculos que se arrastavam como cobras e olhos que brilhavam com uma luz doentia. Não falou, mas Lira sentiu sua intenção: ela era uma intrusa, e o pilar era seu tesouro.
— Não vou parar agora — disse Lira, mais para si mesma, segurando a concha como um escudo.
A criatura atacou, um tentáculo chicoteando na direção dela. Lira mergulhou para o lado, a água amortecendo o golpe, mas o impacto contra a parede da caverna a deixou tonta. A concha brilhou, e uma onda de calor a envolveu, afastando a criatura por um momento. Ela não sabia lutar, mas a concha parecia saber. Seguindo seu instinto, Lira nadou para o pilar, pressionando a concha novamente contra o núcleo.
— Termine isso! — gritou, sem saber para quem.
O pilar respondeu com um pulso de luz tão forte que a caverna pareceu gritar. A criatura recuou, seus tentáculos se contorcendo como se queimassem. A luz dourada se espalhou, e Lira sentiu o Véu vibrar, mais firme, mais vivo. Mas a vitória teve um custo. A concha queimou contra sua pele, e uma dor aguda atravessou seu peito, como se algo dentro dela tivesse sido arrancado.
Ela caiu, ofegante, flutuando na água enquanto a criatura desaparecia nas sombras, derrotada ou apenas recuando. O pilar brilhava, ativo, mas Lira mal conseguia se mover. A concha estava fria agora, mais pesada, como se tivesse absorvido parte dela. As palavras das Tecelãs ecoaram: *a concha é sua força, mas também sua corrente*.
Lira nadou para a superfície, o corpo exausto, a mente em tumulto. Quando emergiu, o barco ainda estava lá, milagrosamente intacto. Ela subiu, tremendo, e olhou para o céu, agora tingido de laranja pelo pôr do sol. Dois pilares ativados. Um restava. Mas a dor no peito e o peso da concha a faziam questionar: o que ela estava dando em troca?
Enquanto o barco flutuava, a concha vibrou uma vez, apontando para um novo destino. Lira fechou os olhos, tentando ignorar o medo de que, no final, o mar pudesse pedir mais do que ela podia dar.
Capítulo 8: O Peso da Corrente
Lira deixou o barco ser levado pela corrente, os braços fracos demais para remar. O pôr do sol tingia o mar de vermelho, como se o próprio oceano sangrasse, e o silêncio ao seu redor parecia zombar da tempestade em sua mente. A concha, agora fria contra seu peito, parecia mais pesada do que nunca — não apenas em peso físico, mas como um fardo que se enraizava em sua alma. A dor que sentira na caverna ainda ecoava, uma pontada sutil que vinha e ia, como um lembrete de que cada pilar ativado cobrava algo dela.
Ela tocou a concha, hesitante. Sempre a vira como uma aliada, um guia, mas as palavras das Tecelãs voltavam sem cessar: *sua força, mas também sua corrente*. E se não fosse apenas uma metáfora? E se, a cada passo, ela estivesse se amarrando mais ao mar, perdendo algo que nem sabia nomear? Sua mão tremia ao afastá-la, e pela primeira vez, Lira considerou tirar a concha do pescoço. Mas o pensamento a assustou mais do que a dor. Sem ela, quem seria?
O mar ficou agitado, ondas batendo contra o barco como se sentissem sua dúvida. A concha vibrou, uma pulsação fraca, mas clara, apontando para o norte, onde o céu escurecia em tons de chumbo. O terceiro pilar. Lira sabia que precisava ir, mas seu corpo pedia descanso, e sua mente gritava por respostas. As visões da lagoa, a criatura nas Presas do Mar, a voz do Recanto das Sombras — tudo parecia conectado, mas o quebra-cabeça estava incompleto.
Ela fechou os olhos, tentando se lembrar das histórias da vila. Sua avó falava de um lugar chamado *A Voragem*, um abismo onde o mar engolia tudo, até a luz. Os pescadores diziam que era o fim do mundo, mas as lendas mais antigas contavam que era onde o mar guardava seus segredos mais profundos. A concha pulsou novamente, mais forte, e Lira soube: era lá que o terceiro pilar a esperava.
Com esforço, ela pegou os remos e começou a remar. O cansaço tornava cada movimento uma batalha, mas a ideia de parar era pior. Se o Véu caísse, se o Devorador acordasse... as imagens da lagoa voltaram, a vila engolida, seus olhos vazios. Não podia falhar. Não agora.
O céu escureceu completamente, e o mar se transformou em um espelho negro, refletindo apenas o brilho da concha. Lira perdeu a noção do tempo, guiada apenas pela pulsação que a puxava para frente. Então, o som mudou — um rugido baixo, constante, como uma cachoeira distante. À frente, o mar parecia colapsar sobre si mesmo, um redemoinho gigantesco que engolia tudo em seu caminho. A Voragem.
Lira parou o barco a uma distância segura, o coração disparado. A concha brilhava intensamente agora, sua luz cortando a escuridão como uma lâmina. O redemoinho era diferente dos das Presas do Mar — não apenas água, mas algo mais, uma força que parecia dobrar o próprio ar. E no centro, quase invisível, uma luz prateada pulsava, fraca, mas viva. O terceiro pilar.
Ela sabia que não podia levar o barco até lá. O redemoinho o despedaçaria em segundos. Mas a ideia de mergulhar naquilo — sozinha, com a concha como única proteção — fazia suas pernas tremerem. Lira olhou para a concha, buscando coragem, mas o que sentiu foi outra pontada de dor, mais forte dessa vez, acompanhada por um sussurro em sua mente: *Você pode parar.* Era sua própria voz, ou algo fingindo ser. Lira apertou a concha com força, ignorando o aviso. — Não vou parar — disse em voz alta, como se precisasse convencer o mar, ou a si mesma.
Ela amarrou o barco a uma rocha próxima e respirou fundo, o ar salgado queimando seus pulmões. A concha aqueceu, como se aprovasse sua decisão, e Lira mergulhou. A água a engoliu, fria e pesada, mas a concha a guiava, mantendo-a firme contra a corrente violenta do redemoinho. Ela nadou para baixo, cada braçada uma luta contra o mar que parecia querer rasgá-la ao meio.
O fundo da Voragem era um vazio, mas a luz prateada crescia, revelando o pilar — diferente dos outros, feito de algo que parecia vidro, com veias de luz correndo por ele como rios. Lira se aproximou, a concha vibrando tão intensamente que doía. Ela estendeu a mão, pronta para ativá-lo, quando uma sombra passou por ela, rápida demais para distinguir.
— Não tão rápido, chave — disse uma voz, grave e fria, vinda de todos os lados.
Lira girou, mas não viu nada além da escuridão. A concha pulsava em alerta, e o pilar brilhou, como se sentisse a ameaça. Então, a sombra voltou, tomando forma — não uma criatura como as outras, mas algo quase humano, com olhos que brilhavam como o Devorador. Não era ele, mas carregava seu eco.
— O Véu não será seu — disse a figura, sua voz cortando a água como uma lâmina. — Cada pilar que você toca acorda mais do que protege. Você sente, não sente? A concha está te consumindo.
Lira recuou, o medo misturado com raiva. — Saia do meu caminho. A figura riu, um som que fez o pilar tremer. — Você não entende, Lira. Eu não sou o inimigo. Sou o que resta quando o mar toma tudo. Antes que ela pudesse responder, a figura avançou, e a Voragem explodiu em movimento, como se o próprio abismo tivesse ganhado vida.
Antes que ela pudesse responder, a figura avançou, e a Voragem explodiu em movimento, como se o próprio abismo tivesse ganhado vida. Correntes giraram ao redor de Lira, puxando-a em direções opostas, enquanto sombras dançavam nas bordas de sua visão, indistintas, mas carregadas de ameaça.
A concha em seu pescoço queimou, sua luz cortando a escuridão, mas mesmo ela parecia lutar contra a força da Voragem. A figura pairava à sua frente, não mais sólida, mas fluida, como se fosse feita da própria água, seus olhos brilhando com uma intensidade que fazia Lira querer desviar o olhar.
— Você acha que pode controlar o mar? — a voz da figura ecoou, agora dentro de sua cabeça, cada palavra como um peso esmagando seu peito. — A concha não é sua mestra, Lira. Ela é sua prisão.
Lira tentou nadar até o pilar, mas a corrente a segurava, forte como mãos invisíveis. A dor no peito voltou, mais aguda, sincronizada com o pulsar da concha. Ela apertou os dentes, recusando-se a ceder. — Se é uma prisão, por que você tem medo do que eu posso fazer com ela? — retrucou, a voz rouca, mas firme.
A figura hesitou, seus contornos tremeluzindo, e por um instante, Lira viu algo em seus olhos — não apenas raiva, mas um traço de desespero. Aproveitando a pausa, ela forçou o corpo contra a corrente, estendendo a mão para o pilar. A concha vibrou violentamente, e quando seus dedos tocaram a superfície vítrea, uma onda de luz prateada explodiu, empurrando a figura para trás.
O pilar respondeu, suas veias brilhando com mais força, e Lira sentiu o Véu pulsar em sua mente, quase completo, mas ainda frágil. A figura rugiu, um som que fez a Voragem tremer, e se lançou contra ela novamente, agora com garras de sombra que rasgaram a água. Lira desviou por pouco, a concha guiando seus movimentos como se tivesse vontade própria.
— Você não vê? — a figura sibilou, suas garras parando a centímetros de seu rosto. — Cada pilar que você ativa dá ao Devorador mais força para acordar. Você não está salvando nada. Está acelerando o fim.
As palavras acertaram Lira como um golpe, ecoando suas próprias dúvidas. Ela olhou para o pilar, depois para a concha, e por um momento, hesitou. E se a figura estivesse certa? E se todo esse caminho fosse um erro? Mas então, a memória da vila, de sua mãe, dos rostos que ela conhecia desde criança, voltou com força. Não podia parar. Não agora.
Com um grito, Lira pressionou a concha contra o núcleo do pilar. A luz prateada explodiu, cegante, e a Voragem pareceu gritar em resposta. A figura se dissolveu, seus olhos ainda fixos nela enquanto sumia, deixando um último sussurro: — O preço virá, chave. E você não estará pronta.
O pilar brilhou, estável, e o Véu em sua mente se solidificou, uma barreira reluzente que pulsava com vida. Mas Lira caiu, exausta, flutuando na água enquanto a dor no peito se intensificava, agora acompanhada por uma fraqueza que a fazia tremer. A concha estava silenciosa, mas mais pesada do que nunca, como se tivesse sugado algo vital dela.
Ela nadou para a superfície, cada movimento uma batalha. Quando emergiu, o redemoinho da Voragem havia parado, o mar estranhamente calmo sob um céu sem estrelas. O barco balançava ao longe, intacto. Lira subiu, ofegante, e olhou para a concha. Três pilares ativados. O Véu estava forte. Mas as palavras da figura ecoavam: *Você está acelerando o fim.* Lira segurou a concha, dividida entre alívio e medo. O mar estava quieto, mas ela sentia olhos invisíveis a observando, esperando. E no fundo de sua mente, uma nova certeza crescia: o verdadeiro teste ainda não havia começado.
Capítulo 9: O Silêncio Após o Véu
Lira deitou no fundo do barco, o balanço suave do mar contrastando com a tempestade em seu peito. A concha repousava fria contra sua pele, não mais pulsando, como se tivesse adormecido após a ativação do terceiro pilar. O céu acima era um vazio sem estrelas, pesado, como se o próprio mundo prendesse a respiração. Ela deveria sentir alívio — o Véu estava restaurado, os três pilares brilhavam em sua mente como faróis, mantendo o Devorador preso.
Mas as palavras da figura na Voragem se recusavam a desaparecer: *Você está acelerando o fim.* Ela se sentou, o corpo dolorido protestando. A fraqueza que sentira na caverna não passava; era como se uma parte dela tivesse sido deixada para trás, dissolvida na luz do pilar. Lira olhou para a concha, hesitando antes de tocá-la. Sempre fora sua guia, sua força, mas agora a via com outros olhos.
Era mesmo uma aliada, ou apenas um laço que a prendia a um destino que não escolhera? O mar permaneceu calmo, mas havia algo errado no silêncio. Nenhum pássaro, nenhuma onda quebrando ao longe. Até o vento parecia hesitar. Lira pegou os remos, precisando se mover, voltar para a vila, ver sua mãe, confirmar que tudo valera a pena. Mas antes que pudesse remar, a concha vibrou — não com a urgência de antes, mas com um tremor baixo, quase triste.
Uma luz fraca surgiu no horizonte, não dourada ou prateada como os pilares, mas de um azul profundo, como o coração do mar. Lira franziu a testa. A Guardiã dissera que três pilares selariam o Véu. Então por que a concha a chamava novamente? Ela fechou os olhos, tentando ouvir, e uma imagem veio: uma vasta planície submersa, onde a água parecia sólida, no centro, um altar que pulsava com o mesmo azul que via agora. Não era um pilar. Era algo mais.
— O que você quer de mim agora? — perguntou em voz alta, a frustração vazando. A concha não respondeu, mas a luz no horizonte ficou mais forte, e com ela veio um som — não o canto das Tecelãs, nem o rugido da Voragem, mas um lamento, tão antigo que fez seus olhos arderem com lágrimas que ela não entendia.
Lira remou em direção à luz, cada movimento carregado de relutância. A vila podia esperar. O mar, não. À medida que se aproximava, o azul revelou-se uma abertura no oceano, como uma janela para outro mundo. A concha aqueceu, e Lira soube que precisava mergulhar novamente. Ela amarrou o barco, respirou fundo e desceu, a água envolvendo-a como um abraço familiar, mas frio.
A abertura levava a uma câmara diferente de tudo que vira antes. Não havia corais ou cristais, apenas uma vastidão lisa, como se o mar tivesse sido esculpido em vidro. O altar estava no centro, uma estrutura simples, mas imponente, feito de algo que parecia ao mesmo tempo pedra e água. A concha brilhou, e Lira sentiu um puxão, como se o altar a reconhecesse.
Quando se aproximou, o lamento cresceu, e ela viu figuras na penumbra — não sólidas, mas ecos, como as visões da lagoa. Eram pessoas, ou algo próximo disso, com conchas idênticas à sua penduradas no pescoço. Seus rostos eram borrados, mas seus olhos carregavam o mesmo peso que Lira sentia agora. Ela parou, o coração apertado. — Quem são vocês? — sussurrou.
— Os que vieram antes — disse uma voz, não do altar, mas de dentro dela. A Guardiã apareceu, não flutuando, mas como uma sombra na água, seus olhos mais tristes do que nunca. — Cada um deles carregou a concha. Cada um deles selou o Véu. E cada um pagou o preço.
Lira recuou, a verdade caindo sobre ela como uma onda. — O preço... — Sua voz falhou. — O que é? O que a concha tirou deles? A Guardiã não respondeu diretamente. Em vez disso, apontou para o altar. — O Véu está forte, mas não completo. O altar exige um selo final, Lira. Um juramento. A concha deve retornar ao mar... e com ela, seu portador. Lira sentiu o ar — ou o que restava dele — fugir de seus pulmões. — Você está dizendo... que eu tenho que morrer?
— Não morrer — corrigiu a Guardiã, sua voz suave, mas firme. — Tornar-se parte do mar. O Véu não é apenas uma barreira. É uma promessa, sustentada pelo sacrifício daqueles que o escolheram. Sem isso, o Devorador encontrará um caminho.
Lira olhou para o altar, depois para a concha, e finalmente para os ecos ao seu redor. Eles não pareciam acusá-la, mas também não ofereciam conforto. Eram apenas... presentes, testemunhas de uma escolha que agora era dela. A dor no peito voltou, e ela soube, com uma clareza terrível, que a concha sempre soubera disso. Cada pilar, cada passo, a trouxera para esse momento.
— E se eu recusar? — perguntou, a voz tremendo. — E se eu voltar para casa?
A Guardiã inclinou a cabeça, sem julgamento. — Você pode. O Véu durará por um tempo. Talvez anos. Mas o Devorador é paciente. E quando ele vier, não haverá mais chaves para detê-lo. Lira fechou os olhos, as imagens da vila voltando — sua mãe rindo, seu irmão consertando redes, o cheiro de pão quente nas manhãs. Então, a visão da lagoa sobrepôs-se: ondas engolindo tudo, seus olhos vazios. Ela abriu os olhos, as lágrimas se misturando à água ao seu redor.
— Me diga como fazer — disse finalmente, a voz firme apesar do medo.
A Guardiã assentiu, e o altar brilhou, pronto para receber o que o mar sempre pedira. A luz azul pulsava como um coração vivo, cada onda de brilho puxando Lira para mais perto, como se o próprio oceano a chamasse pelo nome. Ela flutuou em direção ao altar, a concha em seu pescoço vibrando em harmonia, não mais pesada, mas leve, como se soubesse que seu propósito estava prestes a se cumprir.
Os ecos das figuras ao redor a observavam em silêncio, seus olhos carregados de uma mistura de orgulho e pesar, como se compartilhassem o peso da escolha que ela estava fazendo. Lira parou diante do altar, sua mão pairando sobre a superfície lisa. A água ao redor parecia segurá-la, gentil, mas firme, como se dissesse que não havia mais volta.
Ela olhou para a concha, tão familiar, tão parte dela, e sentiu um aperto no peito — não a dor de antes, mas uma saudade antecipada de tudo que estava deixando para trás. A vila, sua mãe, o som das ondas na praia ao amanhecer. Tudo isso parecia tão distante agora, como um sonho que pertencia a outra pessoa.
— O que eu faço? — perguntou, sua voz quase perdida na vastidão da câmara.
A Guardiã flutuou ao seu lado, sua presença mais sólida agora, mas ainda etérea. — Coloque a concha no altar. Dê seu juramento ao mar. Prometa protegê-lo, e ele a aceitará como parte do Véu. Lira hesitou, os dedos segurando a concha com força. — E depois? O que acontece comigo?
— Você se tornará o selo — respondeu a Guardiã, sem desviar o olhar. — Sua essência fortalecerá o Véu, mantendo o Devorador preso. Você não será mais Lira, como é agora, mas não deixará de existir. O mar é eterno, e você será parte dele.
As palavras eram ao mesmo tempo um conforto e uma sentença. Lira olhou para os ecos novamente, perguntando-se quem haviam sido — pescadores, sonhadores, pessoas comuns como ela, arrancadas de suas vidas por um chamado que não podiam ignorar. Ela quis gritar, perguntar por que o mar pedia tanto, por que ela tinha que carregar esse fardo. Mas no fundo, sabia a resposta. Porque ela escolhera responder.
Desde o momento em que soltara a rocha e mergulhara no abismo, cada passo a trouxera aqui. Com um suspiro trêmulo, Lira tirou a concha do pescoço. Era a primeira vez que a removia desde que sua mãe a colocara em seu pescoço, anos atrás. Sem ela, sentiu-se nua, vulnerável, mas também estranhamente livre. Ela segurou a concha com as duas mãos, sentindo seu calor uma última vez, e a colocou no centro do altar.
O brilho azul explodiu, envolvendo-a como uma onda. Lira fechou os olhos, e memórias que não eram suas inundaram sua mente — risos de crianças em praias esquecidas, tempestades que moldaram continentes, o canto do mar em eras antes dos homens. Ela viu o Véu, não como uma barreira, mas como uma tapeçaria viva, tecida por incontáveis juramentos como o dela. E no centro, preso em correntes de luz, o Devorador dormia, seus olhos fechados, mas inquietos.
— Eu prometo — disse Lira, a voz ecoando na câmara, clara e forte. — Prometo proteger o mar, o Véu, tudo o que ele guarda. Eu me entrego a você.
O altar respondeu, a luz se intensificando até apagar tudo ao seu redor. Lira sentiu-se dissolver, não com dor, mas com uma paz que nunca conhecera. A concha derreteu no altar, e com ela, o que restava de sua forma mortal. Mas enquanto sua consciência se espalhava, misturando-se à corrente, ela ouviu um último som — um rugido distante, abafado, como se o Devorador, mesmo em seu sono, soubesse que fora derrotado mais uma vez.
Na superfície, o mar brilhou por um instante, um azul tão puro que os pescadores da vila, despertados em suas camas, olharam para o horizonte com lágrimas nos olhos, sem saber por quê. O barco de Lira flutuava vazio, levado suavemente para a costa, onde sua mãe o encontraria ao amanhecer, sabendo, de alguma forma, que sua filha havia cumprido o que nascera para fazer.
E nas profundezas, onde o Véu pulsava, uma nova voz se juntou ao coro eterno do mar, sussurrando para aqueles que um dia seriam chamados a segui-la.
Epílogo: A Canção da Costa
Os anos passaram como ondas suaves na praia da vila, cada um trazendo mudanças tão sutis que só os mais atentos percebiam. O mar, antes temido por suas lendas sombrias, tornou-se um aliado generoso. As redes dos pescadores voltavam cheias, as tempestades desviavam seu curso, e as crianças corriam pela areia sem o peso das histórias antigas. A vila prosperava, e com ela, uma paz que parecia nascer do próprio oceano.
Na casa mais próxima da praia, a mãe de Lira, agora com cabelos grisalhos entremeados de branco, mantinha o barco de sua filha ancorado no quintal. Ela nunca explicara por que não o usava, nem por que às vezes, ao amanhecer, sentava-se na proa com os olhos fixos no horizonte. Os vizinhos sussurravam que era luto, mas quem a conhecia via algo diferente — um orgulho quieto, uma certeza de que Lira não estava perdida, mas transformada.
Uma manhã, décadas após aquela noite em que o mar brilhou azul, uma jovem da vila, chamada Mara, caminhava pela praia, coletando conchas para seus colares. Ela era curiosa, sempre atraída pelas histórias que os mais velhos contavam sobre uma garota que dançara com o mar. Enquanto revirava a areia, seus dedos encontraram algo diferente — uma concha pequena, perfeitamente espiralada, brilhando com um azul que parecia vivo.
Quando a tocou, sentiu um calor suave, e por um instante, ouviu um sussurro, não de palavras, mas de coragem, de promessa. Mara levou a concha para casa, sem saber o que significava, mas sentindo que era especial. Naquela noite, sonhou com uma figura de olhos gentis, cercada por água que cantava. A figura não falava, mas Mara acordou com uma certeza estranha: o mar a observava, não com fome, mas com esperança.
Ela pendurou a concha no pescoço, e ao longo dos anos, tornou-se a contadora de histórias da vila, compartilhando contos de uma guardiã que vivia nas ondas, protegendo a todos com um coração que nunca parava de pulsar. O Véu permanecia forte, sustentado pelo juramento de Lira e daqueles que vieram antes. O Devorador dormia, seus rugidos silenciados, preso em correntes que brilhavam com a luz de incontáveis sacrifícios.
Mas o mar não esquecia. Ele guardava Lira, não como uma prisioneira, mas como uma parte de si, sua voz ecoando em cada onda que beijava a costa, em cada brisa que levava o sal aos rostos dos vivos. Na vila, as crianças cresciam ouvindo a lenda de Lira, não como uma tragédia, mas como uma vitória.
Elas corriam para a praia ao amanhecer, rindo enquanto as ondas lambiam seus pés, e às vezes, juravam ouvir uma melodia suave, como uma canção de ninar vinda do horizonte. Os mais velhos sorriam, sabendo que era verdade, porque Lira nunca partira de verdade.
E assim, o mar e a vila viveram em harmonia, ligados por uma promessa que não precisava de palavras. Lira, agora parte do eterno, velava por eles, seu coração batendo no ritmo das marés, garantindo que o futuro fosse tão brilhante quanto o azul que um dia iluminara o mundo.
Capítulo Final: A Luz do Retorno
O altar brilhou com uma intensidade que apagou o mundo ao redor de Lira, a luz azul envolvendo-a como um abraço. Ela esperava dissolver, tornar-se apenas uma voz no mar, como a Guardiã dissera. A concha derreteu no altar, e com ela veio uma paz profunda, mas também um vazio, como se parte de sua essência estivesse escorrendo para o oceano. Seus olhos se fecharam, e ela se preparou para o fim, para ser o selo do Véu, o preço que o mar cobrava.
Mas então, algo mudou. O lamento que ecoava na câmara cessou, substituído por um canto — não triste, mas vibrante, cheio de vida. A luz azul pulsou, não consumindo, mas devolvendo. Lira sentiu um calor crescer em seu peito, onde a concha estivera, e uma voz, não da Guardiã, mas de algo maior, sussurrou: *Você deu o suficiente.* Ela abriu os olhos, confusa. A câmara ainda estava lá, o altar brilhando suavemente, mas os ecos das figuras haviam desaparecido. A Guardiã flutuava à sua frente, seus olhos brilhando com uma emoção que Lira nunca vira — alegria.
— O que... o que aconteceu? — perguntou Lira, a voz trêmula. — Eu fiz o juramento. O Véu...
— O Véu está selado — disse a Guardiã, sua voz suave como uma onda. — Mas o mar viu seu coração, Lira. Você ofereceu tudo, sem hesitar, não por dever, mas por amor. E o mar, em sua sabedoria, escolheu te libertar.
Lira tocou o peito, onde a concha costumava estar. Não havia mais peso, nem dor, apenas uma leve pulsação, como se uma parte do mar ainda vivesse nela. — Então... eu não preciso ficar? A Guardiã sorriu, um gesto tão humano que aqueceu a câmara. — O selo foi feito com sua promessa, não com sua vida. A concha cumpriu seu papel, e agora você é livre para voltar. Mas saiba, Lira, que o mar nunca te esquecerá. Você sempre será parte dele.
Antes que Lira pudesse responder, a água a envolveu, não como uma corrente puxando-a para baixo, mas como uma mão gentil guiando-a para cima. Ela nadou, o corpo leve, a exaustão substituída por uma energia que parecia vir do próprio oceano. Quando emergiu, o céu estava claro, salpicado de estrelas, e o mar refletia sua luz como um espelho vivo. O barco balançava a poucos metros, esperando por ela.
Lira subiu, rindo apesar de si mesma, as lágrimas se misturando ao sal em seu rosto. O Véu estava seguro, o Devorador preso, e ela... ela estava viva. Remou para a vila, o horizonte agora tingido pelos primeiros raios do amanhecer. Quando chegou à praia, sua mãe estava lá, como se soubesse, os olhos arregalados de esperança e medo.
— Lira? — chamou, a voz quebrando.
Lira correu para ela, os braços envolvendo-a com força. — Estou aqui, mãe. Estou em casa. A vila despertou com a notícia, e logo a praia se encheu de rostos familiares — seu irmão, os pescadores, as crianças que corriam atrás dela pedindo histórias. Lira contou o que pôde, sem mencionar o Devorador ou o preço que quase pagara. Em vez disso, falou do mar como um amigo, um guardião que escolhera protegê-los. E eles acreditaram, porque o mar, desde aquele dia, parecia sorrir.
Os anos que se seguiram foram de paz. O mar trouxe peixes em abundância, as tempestades se tornaram raras, e a vila floresceu. Lira nunca mais usou uma concha, mas às vezes, ao caminhar pela praia, sentia um calor suave no peito, como se o mar sussurrasse seu nome. Ela se tornou a contadora de histórias da vila, ensinando às crianças que o oceano não era algo a temer, mas a respeitar, um lar vivo que guardava segredos e promessas.
E em noites claras, quando as estrelas brilhavam mais forte, Lira sentava-se na areia, olhando o horizonte. Não havia mais chamados, nem peso, apenas gratidão. O Véu pulsava nas profundezas, sustentado por sua coragem, e o Devorador dormia, sonhando com um fim que nunca viria. Lira sorria, sabendo que havia vencido — não apenas o mar, mas o medo de não ser suficiente.
E assim, com o canto das ondas como companhia, ela viveu, livre, amada, e para sempre tocada pelo azul eterno do oceano.
Fim! Autor Igídio Garra!